Noite.
Tô andando,
pensando na vida
e no quanto estava atrasado para o ensaio.
Cantarolando alguma coisa
que não era português
e nem eu mesmo entendia.
Aí,
acontece:
vejo em plena calçada,
cinco pessoas em volta de um cão.
Atropelado.
O Cão, ou Eu
Noite. Tô andando, pensando na vida e no quanto estava atrasado para o ensaio. Cantarolando alguma coisa que não era português e nem eu mesmo entendia. Aí, acontece: vejo em plena calçada, cinco pessoas em volta de um cão. Atropelado. Já haviam jogado água nele e estava meio sentado, meio em pé. Ofegava e olhava a todos com cara de susto e interrogação. Ao que tudo indicava Ele morreria dali a pouco tempo. Pedi espaço. Talvez por isso o cachorro me olhou e tentou, de onde estava, me cheirar assustado. Foi aí que eu percebi que ele não conseguia andar, e estava sangrando, mas não dava para saber de onde o sangue saía. Ficamos nos olhando um tempinho. Eu e o cão. Última vez que vi um olhar assim, (olhar em que você do nada se reconhece) me apaixonei. Por um momento tive a impressão de saber mais coisas sobre a vida. Lindo. Olhar de quem quer viver e ver no outro a via disto. Logo a mim. O que eu poderia fazer? Eu tinha um ensaio. Eu estava duro. Não conhecia ninguém que me ajudasse a levar o bicho para um veterinário naquele momento. Ninguém pararia o carro para ajudar um vira-lata quase morto. Pensei em levar ele para casa e mandar todo mundo do ensaio se fuder. É. Mas a turma lá de casa me declararia louco se me visse entrando porta a dentro com um cachorro do meu tamanho, todo sujo de terra, ensangüentado, levando-o para o meu quarto e dizendo que era para ele morrer em paz. Mas, o danado, continuava apenas a me olhar. E a balançar o rabo...
Fui para o meu ensaio.
Duas horas depois, voltando para casa, rua vazia, me deparo com ele de novo. Ainda vivia. Continuava sangrando. Agora mais deitado e ofegante. Acho que ele já me olhava desde longe. Ficamos um em frente ao outro. Vi os carros passando. Vi meu ensaio na memória. Vi os olhos do cachorro. Que agora, com certeza, eram os meus olhos. Poucas vezes na vida olhei alguém assim. E muito pouco fui olhado também. Estava diante de um momento importante da minha vida. Se eu tentasse salvar aquele animal, que ninguém ligava ou se importava, que era apenas um cachorro (mas que, de alguma forma, era eu), compraria uma briga com tudo o que me dava medo. Compraria briga com o impossível. Agora era apenas o som do bar à distância, dos carros passando e o cão. E eu. Me abaixei. Mais olhares. Mais rabo balançando. - Me desculpe... Não consigo. Ninguém entenderia. É quase madrugada. Não tenho grana para te ajudar. Não tenho força. Não sei nem quem eu sou para impor a sua vida. Que é importante para você e para mim... Mas parece que só nós dois não basta... Ele era só dor e rabo em balanços. Me levantei. Dei as costas. Andando, fui deixando o cachorro morrer, mas sabia que, ao deixar aqueles olhos, deixaria também o que de mais essencial existia em mim. Por mais louco, infantil e besta que fosse. Ele morreria e eu, simplesmente, não conseguia salvá-lo. Não era o primeiro, nem seria o último a aparecer na minha frente. Ainda me perguntei quantos cachorros eu já havia deixado morrer. E quantos nem eram necessariamente cachorros. Ainda olhei pra trás e ele, ainda me observava, e ainda balançava o rabo.
O cachorro morreu.
Os cachorros, às vezes, não aparecem na forma de cachorros, e os olhos, às vezes, não são olhos. Mas sempre, em algum momento, algo te propõe, algo te chama, para você ser você.
Salve seus cachorros.
(c)Alan, o Miranda. www.alanmiranda.blogger.com.br ______________________ Sobre el autor: Ver Galería de Escritoras y Escritores en Archivos del Sur